Autora do artigo:Ana Lúcia Pereira, Mestre em tecnologia e ciência alimentar
A gastronomia molecular é uma subdisciplina da ciência alimentar, que tem o propósito de estudar as transformações físicas e químicas que ocorrem nos ingredientes durante a confeção. Esta área aborda três componentes principais: social, artística e técnica. É uma forma moderna de cozinhar, que confere uma “roupagem” diferente à cozinha tradicional.
Como surgiu a gastronomia molecular?
Tudo começou com Hervé This, um químico físico francês do INRA (Instituto Nacional de Investigação Agropecuária), que ao cozinhar um soufflé de queijo em sua casa, não seguiu a receita à risca, que indicava a adição das claras de ovo duas de cada vez, ao passo que This as adicionou todas ao mesmo tempo, não conseguindo confecionar o seu soufflé. Ao invés de desistir dos soufflés, This decidiu debruçar-se sobre as “precisões culinárias”, percebendo deste modo que existia um estudo sistemático e científico por detrás da preparação dos alimentos
Surgiu assim o termo “gastronomia molecular e física”, em 1988, criado por This em conjunto com o físico húngaro Nicholas Kurti da Universidade de Oxford. Eventualmente, o termo foi encurtado para “gastronomia molecular”.
Contudo, a ideia de estudar os fenómenos químicos e físicos associados ao processo de cozinhar já vem desde o século XVIII. Alguns precursores a destacar são: Marie-Antoine Carême (1784-1833), uma chefe francesa; Belle Lowe, professora de Alimentação e Nutrição no Iowa (EUA), que em 1932 publicou o livro “Cozinha Experimental: de um ponto de vista químico e físico”; Evelyn G. Halliday e Isabel T. Noble, professoras de ciência doméstica da Universidade de Chicago e Minnesota (EUA), respetivamente, que publicaram um livro intitulado “Química Alimentar e Cozinha”, em 1943.
A ciência alimentar divide-se em vários ramos distintos, que estudam diferentes aspetos dos alimentos: segurança, microbiologia, conservação, química, engenharia e física. A ciência alimentar preocupou-se primeiramente com a produção industrial de alimentos e, à medida que as diferentes disciplinas que lhe estão associadas se foram sobrepondo, houve a necessidade de as separar em áreas de investigação distintas. Até ao aparecimento da gastronomia molecular, não existia nenhum ramo dedicado ao estudo dos processos químicos e físicos associados ao processo de cozinhar doméstico, ou seja, o cozinhar em casa e nos restaurantes.
Objetivos da gastronomia molecular
Os objetivos da gastronomia molecular passam por perceber os mecanismos das transformações e processos culinários (do ponto de vista químico e físico) em três áreas ligadas à atividade culinária: o fenómeno social, o elemento artístico, e a componente técnica. Assim, os objetivos fundamentais originais desta disciplina, definidos por This, são:
- Investigar os provérbios culinários e gastronómicos, dizeres e histórias das donas de casa;
- Explorar receitas existentes;
- Introduzir novos utensílios, ingredientes e métodos na cozinha;
- Inventar novos pratos;
- Utilizar a gastronomia molecular para ajudar a entender a contribuição da ciência na sociedade.
Propósitos da gastronomia molecular
Alguns dos principais tópicos de investigação na gastronomia molecular são:
- Perceber como os ingredientes são alterados por diferentes métodos de confeção;
- Entender o papel de todos os sentidos sensoriais na apreciação dos alimentos;
- Conhecer os mecanismos de libertação de aromas e a perceção do sabor e odor;
- Perceber como os métodos de confeção afetam eventualmente o sabor/odor e textura dos ingredientes;
- Entender como os novos métodos podem conduzir a texturas e sabores/odores melhorados;
- Compreender como o nosso cérebro interpreta os sinais que provêm de todos os nossos sentidos e que nos indicam o sabor/odor dos alimentos;
- Averiguar como o nosso interesse nos alimentos pode ser afetado por outras influências, como o ambiente, o nosso humor, a forma como a comida é apresentada, quem a prepara, etc.
Técnicas e ingredientes da gastronomia molecular
Uma das principais técnicas de gastronomia molecular é a esferificação, que permite criar esferas com efeito caviar a partir de qualquer líquido, podendo assim ter qualquer sabor (maçã, laranja, azeite, …). Estas esferas foram descritas na Gourmet magazine como “uma explosão na boca com um pop agradavelmente suculento”. Esta técnica consiste numa reação gelificante entre cloreto (ou lactato) de cálcio e alginato: mistura-se o líquido pretendido com o cloreto de cálcio e o alginato com água; depois, delicadamente e com o auxílio de uma seringa, deixa-se cair a mistura líquido/cloreto de cálcio no alginato/água, onde ocorre uma reação que leva à formação de uma espécie de gel em forma de esfera (devido à forma como se deixa a mistura cair). Esta técnica pode ainda derivar numa forma de esparguete.
Fonte: YouTube.
Outras técnicas envolvem a utilização de emulsificantes (lecitina e goma xantana) que permitem misturar 2 ou mais ingredientes que normalmente não se misturariam (por exemplo, água e azeite). Os hidrocolóides (amido, gelatina, pectina e gomas naturais), para além de serem emulsificantes, funcionam também como agentes espessantes, gelificantes e estabilizadores.
A gastronomia molecular caracteriza-se por ter estilos de apresentação vanguardistas, com a criação de novas texturas, como géis, espumas e bolhas (para as quais se utiliza dióxido de carbono), alimentos tipo vidro, etc. É também comum a combinação de sabores pouco usuais, como a junção do doce e do salgado, e ainda a utilização de acompanhamentos aromáticos, ou seja, gases presos em recipientes, sacos edíveis ou no próprio alimento, que são libertados após a sua abertura/corte.
Existem ainda técnicas inovadoras de refrigeração/congelamento instantâneos (com a utilização de azoto líquido), e cozimento em micro-ondas que permite manter o interior do alimento quente ao mesmo tempo que o exterior se mantém frio.